domingo, 13 de dezembro de 2015

Elevação dos mares ameaça inundar as ilhas baixas de Kiribati

Os moradores da nação insular lutam para manter à tona seu lar e seu modo de vida

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE   |   Por: Kennedy Warne
 
Era bem na hora chamada de itingaaro, o “crepúsculo do amanhecer”, que a ilha acordava. Os galos competiam para ver quem cantava mais alto e as grazinas trocavam gorjeios de amor nas árvores de fruta-pão. As pessoas iam sonolentas até a laguna para se lavar, jogavam água no rosto e então ajustavam seus sarongues e mergulhavam.
A maré estava cheia e retesada como a pele de uma mulher grávida. Ao fim da laguna, o mar se estendia até o horizonte. Marawa, karawa, tarawa – mar, céu, terra. Essa é a imemorial trindade do povo de Kiribati, os I-Kiribatis. A trindade, porém, está se desequilibrando. Mãe Oceano não é o coração da providência que o povo sempre conheceu. Começa a mostrar uma face diferente, de marés usurpadoras e ondas violentas.
Os I-Kiribatis hoje vivem com o medo da subida do marawa. É época de bibitakin kanoan boong – “mudança no tempo por muitos dias” –, a frase local para alteração climática. O povo convive com o medo e a incerteza dessas palavras.
Como não ter medo quando o mundo vive lhes dizendo que países em ilhas baixas como o deles logo estarão submersos? Seus próprios líderes declararam que Kiribati – 33 ilhas de coral em um trecho do Pacífico Central mais vasto que a Índia – está “entre os vulneráveis dos vulneráveis”. Para eles, Tarawa, o atol onde fica a capital do país, estará inabitável em uma geração.
No entanto, muitos I-Kiribatis se recusam a pensar em sua terra natal como uma “nação insular em desaparecimento”, cujo destino já está fora do alcance deles. Não querem se considerar “ilhéus náufragos”, em vez de descendentes de viajantes, herdeiros de uma altiva tradição de resistência e adaptação. Não acreditam que seu paraíso esteja perto de ser perdido.
Intruso indesejável
MAS CERTAMENTE ESTÁ SOFRENDO. O mar aos poucos se torna um intruso indesejável, erode o litoral, se infiltra nos solos, torna salobra a água dos poços e mata plantações e árvores. Para serem férteis, atóis como o Tarawa dependem de um lençol de água doce que flutue sobre um aquífero de água salgada e seja reabastecido pela chuva. Conforme o nível do mar se eleva – alguns milímetros por ano, hoje em dia, mas provavelmente o processo está em aceleração – também sobe o nível da água salgada no subsolo e encolhe a quantidade de água doce aproveitável. “Agora, odiamos o mar”, me diz Henry Kaake, quando nos sentamos em sua kiakia, uma cabana com os lados abertos, construída sobre palafitas, usada para dormir e conversar com amigos. “O mar é bom porque nele conseguimos nosso alimento, mas um dia ele vai roubar nossa terra.”
Uma das primeiras vítimas da salinidade invasora é o bwabwai, o alimento prestigioso da cultura local, a comida das festas – um tubérculo gigante que cresce em alagados e pode demorar mais de cinco anos para amadurecer. Algumas variedades chegam quase à altura do ombro de uma pessoa. Sensível à intrusão da água salgada nos fossos em que é cultivado, o bwabwai já não pode mais ser plantado em muitas áreas e talvez venha a desaparecer da culinária das ilhas.
Tanques de aquicultura preenchem uma área ao lado do aeroporto Bonriki, em Tarawa, capital de Kiribati. Boa parte do atol está a menos de 2,5 metros acima do nível do mar e em risco de ser alagada com a subida dos mares. - Foto: Kadir van Lohuizen
Governo e organizações de ajuda estão auxiliando os agricultores na adoção do cultivo de outros amiláceos. Em uma horta comunitária em um dos atóis vizinhos de Tarawa, Abaiang, observo Makurita Teakin cortar folhas para transformá-las em cobertura do solo e proteger brotos de uma variedade de taro de raízes pouco profundas, que não necessita de solo alagadiço. Ali perto, outra mulher rega seus brotos com fertilizante de peixe, usando uma lata furada.
A maré escoou nas vastas planícies arenosas da laguna no interior de Tarawa, deixando à mostra uma infinidade de minivulcões de areia feitos por caranguejos ao deixarem suas tocas. Adultos e crianças, munidos de sacos plásticos e baldes, escavam a areia com os dedos e raspam fendas nas rochas com colherinhas: procuram mariscos – chamados ali de koikoi – e lesmasdo-mar. Os coletores avançam até a orla da água que recua, arqueiam o corpo, sondam e raspam para conseguir seus bocados de frutos do mar.
Se encontrarem mariscos suficientes, poderão prepará-los com creme de coco – cozinhá-los dentro de uma casca de coco na fogueira fumacenta feita com cascas desse fruto. Ah, o coqueiro! Haverá alguma coisa que essa árvore, que eles chamam de nii, não forneça? Cestos, vassouras, madeira de construção, palha de telhado, óleo, licor de tari, sabão, um xarope escuro adocicado, o kamwaimwai. A “árvore do céu”, alguns a chamam. Os I-Kiribatis têm mais de uma dezena de palavras só para designar os estágios da fruta – desde a semente nova, antes da formação da água, até a semente velha, com polpa rançosa.
O apego à tradição é importante para muitos I-Kiribatis. Mwairin Timon está fazendo sennit de coco quando a encontro, sentada em uma velha esteira no lado de fora de sua cabana à beira da laguna. A mulher enrola na palma da mão tufos de fibra de coco em um pedaço de madeira achada na praia. Mais de um ano antes, ela enterrou cascas do fruto na laguna e marcou o lugar com uma rocha. Mil marés fizeram seu trabalho, curando e amaciando as fibras. Agora ela as enrola para fazer uma corda, do mesmo modo que sua avó teria feito, assim como a avó da avó antes dela e todas as gerações passadas até os primeiros colonizadores desses atóis, que aqui desembarcaram há cerca de 3 mil anos.
Nuvens de chuva escurecem e passam por sobre a laguna, bloqueando a vista das ilhotas de Tarawa do Norte, o outro lado do atol. Logo trarão alívio a esse lado, Tarawa do Sul, onde vive metade da população do país em menos de 16 quilômetros quadrados de terra. Por sorte, está previsto que as chuvas aumentarão nas próximas décadas, embora venham com mais força, causando enchentes. Como as reservas de água doce subterrâneas estão comprometidas pela elevação do mar – e, no caso de Tarawa, pela forte pressão populacional –, a captação de água da chuva em telhados poderá ser uma alternativa. Em Abaiang, organizações de ajuda estrangeiras forneceram a algumas comunidades sistemas simples para captar, filtrar, tratar e armazenar a água da chuva. Enquanto houver água doce, é possível lidar com outras mudanças – ao menos por algum tempo. Quanto ninguém sabe.
Os eixos da vida
A maré vira e vem deslizando na direção da praia como uma lâmina de vidro verde, empurrando os coletores de marisco na sua frente. As marés são os eixos da vida em Kiribati. Elas e os movimentos do Sol, da Lua e das estrelas, as direções do vento e das grandes ondas. No passado, quem entendesse esses eixos podia calcular a época de plantar, de pescar, de zarpar nas canoas de embono de 30 metros de comprimento, chamadas baurua. Essa era a álgebra do Pacífico.
Os pescadores sabiam que iscas usar, se deviam pescar de dia ou de noite e a melhor tática para apanhar os peixes: anzol, laço ou rede. As certezas daquele mundo estão ruindo. Locais de pesca antes confiáveis agora resultam em linhas e redes vazias. O aquecimento do mar pode estar impelindo alguns peixes para águas mais frias.
Os recifes de coral também sofrem – e, sabemos, o pior ainda está por vir. Conforme o mar se tornar mais quente e ácido ao longo deste século, a previsão é de que o crescimento dos recifes desacelere e até cesse. O branqueamento dos corais – quando corais estressados expelem as algas simbióticas que lhes dão cor e nutrientes – costumava ocorrer mais ou menos a cada dez anos. Mas agora se tornou mais frequente, e talvez, por fim, passe a acontecer anualmente, ameaçando a sobrevivência dos corais e mergulhando em sombras o arco-íris vivo dos recifes.
O destino dos recifes é também o das ilhas. Para se manter com terra acima da água, as ilhas em atóis dependem de depósitos de sedimentos de coral e outros organismos marinhos – sempre despejados em terra firme por tempestades. São como canteiros de obras: se acaba o material, a construção para. Um recife morto não pode sustentar as ilhas que ele construiu.
Que tipo de mundo é este em que o mar consome sua própria criação?
PARA MUITOS I-KIRIBATIs, parece uma tremenda injustiça sofrerem com problemas climáticos em seu país, já que a culpa não é deles. Desde os anos 1980, líderes do Pacífico repreendem, bajulam, suplicam e tentam envergonhar os principais países responsáveis pela poluição por emissão do gás carbônico que influencia na mudança climática. “As ilhas são formigas e os países industrializados são elefantes”, declarou Teburoro Tito, ex-presidente de Kiribati, falando sobre a contribuição ínfima de seu país para os problemas mundiais com o carbono.
Um aspecto da negligência do mundo rico é especialmente difícil de digerir pelos I-Kiribatis. Esse povo faz questão de respeitar fronteiras. Por tradição, uma pessoa nunca tira um coco de uma árvore que não lhe pertence. Nem sequer pega folhas mortas de fruta-pão para acender a fogueira sem primeiro pedir. Os recifes também tinham fronteiras. As pessoas sempre souberam onde tinham direito de coletar seus alimentos.
Esses protocolos são observados até hoje. Quando saio em companhia de pescadores que viajam de Tarawa para Abaiang, em um dia tão calmo que as nuvens ganham ventres azuis com os reflexos do mar, o capitão desliga o motor de popa em certo recife, e um dos tripulantes joga na água cigarros de pandano feitos a mão, como oferenda e sinal de respeito pelos proprietários do território que estão atravessando.
Quando alguém viaja pela primeira vez a outra ilha, assim que chega anuncia sua presença visitando um lugar sagrado. Faz uma doação de cigarros ou moedas, e o cuidador do local passa areia úmida na face do recém-chegado e amarra um cipó verde em volta de sua cabeça. Depois desse ritual em Abaiang, o cuidador do santuário me disse: “Agora você pertence a esta ilha”.
O que os países ricos sabem sobre respeitar fronteiras? O sentimento de injustiça é generalizado nos atóis em maior risco com a elevação dos mares: Kiribati, Maldivas, Ilhas Marshall, Tokelau e Tuvalu. Saufatu Sopoaga, ex-primeiroministro de Tuvalu, chegou a comparar os impactos da mudança climática a “uma forma lenta e insidiosa de terrorismo contra nós”.
Ainda assim, alguns I-Kiribatis rejeitam a retórica da vitimização e a implicação de que os países do Pacífico são impotentes. “Não somos vítimas”, diz Toka Rakobu, que trabalha em uma agência de turismo em Tarawa. “Podemos fazer alguma coisa. Não seremos um povo derrotado.”
Famílias dos atóis da orla de Kiribati afluem para Tarawa do Sul em busca de emprego e educação, inchando a população, que já passa dos 50 mil habitantes. Muitos migrantes vivem em áreas que inundam nas marés altas - Foto: Kadir van Lohuizen
Ainda assim, não dá para censurar políticos, como o presidente de Kiribati Anote Tong, por fazerem o papel de oprimidos pela conjuntura global. Falar em ilhas afogadas e refugiados do clima fez a fama de Kiribati mundo afora. Jornalistas vão a Tarawa para mandar notícias “da linha de frente da crise da mudança climática”. Suas visitas tendem a aumentar na temporada anual das grandes marés, quando a visão das ondas saltando sobre o quebra-mar é dramática. No começo deste ano, uma maré ergueu uma embarcação naufragada perto dos recifes em Betio, a ilha no extremo oeste de Tarawa, arremessou- a para terra firme e perfurou o quebramar. O barco permanece ali, com seu nome irônico: Tekeraoi, “boa sorte”, estatelado na mesma praia onde barcaças de desembarque americanas encalharam durante a Batalha de Tarawa, em 1943, ocasionando um banho de sangue.
Histórias sobre os tormentos climáticos no Pacífico trouxeram uma maré de solidariedade e dinheiro para ajudar Kiribati e as ilhas vizinhas, mas quem escuta essa mensagem de danação ambiental com tanta frequência pode pensar que o único jeito é ir embora. Hoje em dia, se fala muito em partir. Devemos ficar? Devemos ir? Seremos forçados a nos realocar? Para onde? Nenhum país está abrindo suas portas a refugiados do clima. São questões angustiantes, ainda mais porque falam ao senso de identidade. Na língua kiribati, o termo para “terra” e “pessoa” é o mesmo. Se sua terra desaparece, quem é você?
Por outro lado, os povos do Pacífico são famosos por suas migrações. Afinal de contas, seus ancestrais tinham como lar todo o oceano.
Na mitologia da origem de Kiribati, Nareau, o Criador, era uma aranha, e os I-Kiribatis vêm tecendo teias desde então. Toda família possui parentes na Nova Zelândia, Austrália, Fiji e em terras mais distantes. Cada migração é um fio de seda na teia dos laços familiares.
Alguns têm a expectativa de que os jovens deixarão Kiribati e os velhos permanecerão. Mas alguns dos mais novos escolhem uma vida simples em suas terras ancestrais em vez da busca pela prosperidade no exterior. Mannie Rikiaua, jovem mãe empregada no Ministério do Meio Ambiente de Kiribati, me diz que prefere trabalhar para seu povo a servir em outro país, apesar de seu pai aconselhá-la a imigrar para “um lugar mais alto”. “Uma parte de mim quer partir”, admite ela. Mas acrescenta, como se mais uma vez estivesse tomando a decisão: “Kiribati é o melhor lugar para os meus filhos”.
Tangiram abam
Ela está ouvindo a voz do tangiran abam, me explica, o amor e a saudade que os I-Kiribatis sentem por sua terra natal. O Tangiram abam mantém os atóis mais distantes de Kiribati culturalmente vibrantes, embora suas populações encolham enquanto a de Tarawa cresce. É um impulso que permanece forte. Ouço esse amor pelo lugar no som das pessoas que cantam à noite na laguna. Vejo-o nas danças vivazes dos pequenos estudantes quando imitam os movimentos das aves marinhas. Escuto-o nas palavras de Teburoro Tito quando, em um intervalo das sessões do Parlamento, ele me confessa que, no fundo, é um menino das ilhas: “Eu nasci das areias e dos corais desse lugar. Amo as ilhas e não vejo nenhum outro lar para mim no mundo”. para proteger esse lar do oceano faminto, alguns ilhéus resolveram plantar mangues, cuja matriz de raízes e troncos captura sedimentos e arrefece o ímpeto das ondas. Ajudo algumas mulheres a colher sementes maduras que pendem como vagens em meio às folhas verdes de um mangue crescido. Dias depois, nós as plantamos numa parte da laguna que precisa de proteção contra as marés. Não é grande coisa. Porém, não há muito mais o que os moradores possam fazer para se manter em sua terra além de reconstruir o quebra-mar quando as ondas o destroçam.
O mangue bem que daria um bom símbolo nacional, penso: árvores que resistem a tempestades e mantêm a coesão da terra. O símbolo atual, estampado na bandeira de Kiribati, também é evocativo: o eitei, ou fragata, a ave dos chefes, a ave da dança que voa alto e flutua no vento em vez de lutar contra ele. No entanto, as fragatas precisam seguir os cardumes de peixes dos quais se alimentam. Se os peixes se forem para sempre, será que a cauda bifurcada da fragata continuará a cortar os céus de Kiribati?
Claire Anterea, uma das plantadoras de mangue que trabalha no programa de adaptação climática do governo, diz que o povo precisa reconhecer seu papel na mudança climática, por menor que seja, e tentar compensá-la. “Contribuímos menos, mas ainda assim contribuímos”, conta ela. “Comemos muita comida ocidental. Gostamos de macarrão, de Ox & Palm [carne enlatada]. E essa comida é feita em fábricas que produzem gases. Todos estamos contribuindo porque queremos viver à moda ocidental.”
Claire acabou de construir uma casa tradicional, dotada de painel solar para fornecer energia. “Não posso falar em justiça climática no exterior se eu mesma não agir direito”, reconhece. Ela acredita que mesmo pequenas ações têm efeito multiplicador. “Se trabalharmos juntos – todos os países do Pacífico –, poderemos manter nossas ilhas e permanecer aqui.”
Em minha última noite em Tarawa, quero fazer alguma coisa para demonstrar solidariedade com meus vizinhos de Kiribati. Afinal, também venho do Oceano Pacífico – embora as ilhas montanhosas da Nova Zelândia não estejam enfrentando nada parecido com a ameaça à existência desses atóis, onde boa parte da terra firme agora se encontra a apenas 1 metro do nível do mar. Mas o “sangue azul da Oceania”, como o poeta de Kiribati Teweiariki Taero chama o Pacífico, nos une como uma família.
Estamos sem energia elétrica, um problema nada raro nas ilhas. Por isso, minhas amigas plantadoras de mangue – Vasiti Tebamare e Tinaai Teaua, donas de um spa no vilarejo de Temwaiku – sugerem que levemos a comida até a pista do aeroporto. É uma espécie de tradição, em noites tão escaldantes que nenhum ventilador alivia, as famílias abrirem esteiras na pista pouco usada e fazerem um piquenique. Com a brisa que vem do mar, ali sempre é um lugar fresco.
Levamos peixe grelhado, arroz e fatias fritas de fruta-pão para comer e moimoto – coco-verde – para beber. O aeroporto, cintilante de luzes de lanternas, banha-se no suave murmúrio das conversas. Comemos, falamos bastante, depois nos deitamos para olhar as estrelas no fulgurante céu noturno – a “barriga da enguia”, como os I-Kiribatis chamam a Via Láctea.
Gostaria de saber o nome das constelações como os antigos navegadores, conhecê-las tão intimamente como se fossem da família. Eles aprenderam isso olhando o céu como quem olha o teto de um templo, dividido em uma grade formada pelas vigas e linhas do colmo. As estrelas apareciam em um quadrante, viajavam pelo teto e se punham no quadrante oposto.
Os mestres navegadores conheciam mais de 150 estrelas. Em qualquer parte do oceano, sabiam onde estavam. Os I-Kiribatis podem viver em ilhas pequenas, mas não há nada de diminuto na noção que têm de seu lugar no mundo.
 

Jalapão, história e cultura

Fotógrafo premiado com o Jabuti 2012 retrata as Unidades de Conservação do estado do Tocantins

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE   |   Por: Fábio Paschoal

De desertos a florestas tropicais. O fotógrafo Ricardo Martins, autor do livro A Riqueza de um Vale (premiado na categoria fotografia no 54° Prêmio Jabuti 2012) percorreu 5 mil quilômetros em 45 dias para documentar quatro unidades de conservação do último estado formado no Brasil. O resultado pode ser encontrado no livro Jalapão, história e cultura – unidades de conservação do estado do Tocantins.
“O projeto original era apenas o Parque Estadual do Jalapão, mas, chegando em Palmas, em minha primeira reunião com os coordenadores do Naturatins (órgão responsável pelas Unidades de Conservação do Tocantins), fui apresentado para outras três unidades, cada uma com uma beleza peculiar”, diz Ricardo. A partir daí a ideia do fotógrafo mudou e ele decidiu registrar outros parques da região.
[Para ver os bichos registrados por Ricardo durante esse trabalho acesse Fotos de animais do Jalapão e outros parques do Tocantins]
A viagem começou em maio de 2012 no Parque Estadual do Lajeado, no município de Palmas. Lá, as cavernas abrigaram povos pré-históricos que deixaram pinturas rupestres nas paredes de pedra há 10 mil anos atrás. O estilo foi adotado pela comunidade local, que produz artesanato com os mesmos temas retratados pelos primeiros habitantes do lugar.
A segunda parada foi no Parque Estadual do Jalapão, na bacia do São Francisco. A região árida, repleta de dunas, é cortada por rios, riachos e ribeirões de água límpida e transparente que garantem a sobrevivência de animais e plantas. A reserva abriga a comunidade Mumbuca, conhecida pelo trabalho artesanal com o capim dourado.
Ricardo foi depois ao Monumento Natural das Árvores Fossilizadas, também chamado de Parque das Árvores Petrificadas, na bacia do Parnaíba. O lugar abrigou uma floresta há milhões de anos. Hoje alguns exemplares fossilizados são testemunhas daquela época.
A última parte da jornada aconteceu no Parque Estadual do Cantão, uma área de Floresta Amazônica situada no centro-oeste do Tocantins. É uma região de convergência de grandes rios – como o Araguaia, o Javaés e o Coco – habitada por tribos das nações indígenas Carajá e Javaé.
O livro foi lançado em 2012 e pode ser comprado pelo site de Ricardo Martins ou nas grandes livrarias do país.

NG - Foto do livro A Riqueza de Um Vale, obra de Ricardo Martins premiada na categoria fotografia no 54° Prêmio Jabuti 2012
Quatis. Imagem do livro A Riqueza de Um Vale, obra de Ricardo Martins premiada na categoria fotografia no 54° Prêmio Jabuti 2012 - Foto: Ricardo Martins
BIOGRAFIA
Natural de São José dos Campos, Ricardo Martins se formou em jornalismo. Há mais de 10 anos se dedica a fotografia de natureza.
Lançou seu primeiro livro, O Encanto das aves, em 2009. Sua obra seguinte, A Riqueza de um vale, foi premiada na categoria fotografia no 54° Prêmio Jabuti 2012. Jalapão, história e cultura é seu terceiro trabalho publicado.
Ricardo fundou a Fotografia Editoria KONGO e hoje trabalha na produção e execução de seus próprios projetos.

NG - Foto do primeiro livro de Ricardo Martins: O Encanto das Aves
Araçari-banana no primeiro livro de Ricardo Martins: O Encanto das Aves - Foto: Ricardo Martins

David Doubilet: até as profundezas

O mais respeitado fotojornalista subaquático de todos os tempos, David Doubilet fala da sua paixão pelo seu trabalho

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL ONLINE   |   Por: David Doubilet


 Recentemente me indagaram sobre quando ocorreu o meu “momento baleia” – ou seja, quando deixei de ser um mamífero terrestre e me tornei uma criatura anfíbia com uma câmera na mão. A primeira vez em que de fato molhei os pés não resultou de nenhum grande espírito aventureiro, mas do fato de eu ser um menino tímido e curioso com 9 anos de idade. No lago Augur, em Nova York, meus orientadores no acampamento de verão tiveram de lidar com um garoto estranho que sofria de asma e não se misturava com os outros. Por isso, eles me deram uma máscara de mergulho e sugeriram que eu fosse até o lago e retirasse os galhos acumulados sob um cais, lembrando-me de que seria bom se voltasse à superfície de vez em quando para respirar. Mergulhei em um turvo e esverdeado mundo mágico. Vi percas-sóis e lúcios escondidos entre juncos, assim como uma aranha-pescadora gigante que me deixou apavorado. Passei horas ali explorando e até me esqueci de que deveria retirar os tais galhos.

Logo depois, conheci o meu herói, Jacques Cousteau, em Manhattan, por ocasião da estreia de O Mundo do Silêncio, que ganhou o Oscar de melhor documentário. Ao aproveitar os recursos do cinema paramostrar as profundezas do mar, o filme me deixou fascinado. Contei a Cousteau que desejava ser fotógrafo submarino. Ele sorriu e, dando de ombros à maneira francesa, me disse: “Por que não? Vá em frente!”

Minha família tinha duas casas: uma em Manhattan, onde a gente não está longe de um rio, e outra, para as férias, em Elberon, Nova Jersey, perto do mar. Depois daquela primeira incursão subaquática, eu passava os dias de verão a explorar as águas verde-escuras do Atlântico. Quando fiz 12 anos, ganhei uma câmera Brownie Hawkeyede meu pai. Impermeabilizamos a Brownie com um saco de plástico e a prendemos no interior de uma velha máscara de mergulho. Essa foi a minha primeira câmera submarina. Os primeiros resultados foram pavorosos, mas não perdi o entusiasmo.



Ainda adolescente, tornei-me assistente no Laboratório Marinhode Sandy Hook, na costa da Nova Jersey. Junto com os cientistas, mergulhava em um local conhecido como “zona ácida”, onde era lançada boa parte dos rejeitos industriais de Nova York e Nova Jersey. Essa experiência evidenciou que o rigor da ciência não era páreo para minha predileção pela fotografia. Decidi então estudar comunicações na Universidade de Boston, mas também passei boa parte do tempo na outra margem do rio com amigos do Massachusetts Institute of Technology. Um deles era o doutor Harold Edgerton, o lendário inventor do flash estroboscópico. Nossas longas conversas sobre tecnologia se mostraram muito úteis quando comecei a trabalhar para a NATIONAL GEOGRAPHIC. Na minha primeira pauta fui ao lago Ontário documentar um experimento, chamado projeto Sublimnos, que tratava de um hábitat submarino ártico para seres humanos.

Logo estava fotografando as mais diversas criaturas, como tubarões, crustáceos e nudibrânquios, permitindo-me mergulhar fundo em paisagens marinhas que pareciam estranhas mas eram de uma beleza excepcional. A primeira vez que me dei conta do esplendor poético dos oceanos foi ao fotografar um campo de enguias-de-jardim. Meu sonho era um novo tipo de imagem que capturasse o delicado balanço dessas enguias, sem qualquer perturbação em seu ambiente. Com muito esforço da equipe, conseguimos isso na costade Eilat, em Israel, com uma câmera oculta na areia controlada a distância e acionada por um cabo comprido que ia até um esconderijo subaquático. Quando a foto foi revelada, sabia que tínhamos afinal um artigo – e também que a fotografia submarina era a minha vocação.

Quanto mais eu mergulhava, mais eu descobria mundos sobre osquais a humanidade pouco sabia e quase nada entendia. A grande “história” da década de 1970 relacionada ao mar foi o filme Tubarão, claro, e a NATIONAL GEOGRAPHIC me enviou em uma viagem ao redor do planeta para fazer uma cobertura mais verdadeira sobre esses animais. Ao lado da doutora Eugenie Clark, observei o universo dos tubarões por um ano e meio, desde a costa do Japão, passando pelo mar Vermelho, até a Austrália. Com a ajuda de vários especialistas, ajudamos a demolir diversos mitos sobre esses animais tão estigmatizados.
Fazer fotos em um ambiente submarino é semelhante a fotografar acidade de Nova York envolta em densa neblina com apenas 50 metros de visibilidade. Além disso, a gente não alcança o nível das ruas, pois só se consegue fotografar de uma altitude de 20 andares e, dependendo das marés e de outros fatores, às vezes temos apenas 15 ou 20 minutos por dia para trabalhar. Também não conseguimos conversar com ninguém, pois não falamos sua língua, e todos se afastam rapidamente, tornando ainda mais difícil obter a imagem de um rosto.

Minha carreira como fotógrafo foi a descoberta de que o mundo sob aquele cais no lago Augur se estende por todo o planeta. Embora agente imagine o mar como um ambiente extraterreno, a maior parte do globo – e grande parte de sua fauna – está, na verdade, sob a superfície da água. Conhecemos tão pouco esse universo oceânico que cada mergulho traz descobertas surpreendentes. Não há como negar que vivemos a Era da Exploração Submarina. Os oceanos, porém, estão sofrendo com a acidificação, a pesca excessiva, a poluição e o aumento na temperatura das águas. A química do planeta está mudando, e os recifes de coral já foram irremediavelmente danificados. Espero que minhas imagens ajudem os leitores a ver o oceano não como uma fronteira remota, mas sim como parte vital do planeta, que deve ser valorizada e preservada para as próximas gerações.